quarta-feira, outubro 06, 2004

Celsius ou Fahrenheit?



Ray Bradbury escreveu em 1953 um dos seus livros mais marcantes. Intitula-se Fahrenheit 451 que é, segundo o autor, a temperatura a que esse mesmo livro se incendiaria.
Nas altas temperaturas da política à americana, foi Michael Moore buscar inspiração a Bradbury para realizar o seu último filme a que deu o nome Fahrenheit 9/11 – que segundo o realizador é a temperatura a que arde a liberdade. Em resposta, um grupo de cineastas também americanos fizeram um outro filme, Celsius 41,11, argumentando ser essa a temperatura a que o cérebro de Michael Moore derrete.
Mas, vejamos: destas três manifestações artísticas, ou não, só não vi o Celsius 41,11. O livro de Ray Bradbury constitui-se, sob a capa de um "longínquo futurismo" como uma crítica mordaz e inteligente a alguns ditames da sociedade dos anos 50 - e, diga-se, continua perfeitamente actual. O filme de Michael Moore é um folhetim de campanha anti-Bush. O próprio realizador, que cobra cerca de 30.000 euros (à volta de 6000 contos) por discurso na sua tournée anti republicana pelos EUA, assume que o denominado documentário é um instrumento de campanha em favor do candidato democrata às eleições presidenciais norte-americanas a realizar a 2 de Novembro próximo. É claro que esta assumpção por parte de Moore passou completamente ao lado dos fazedores de opinião e dos cinéfilos (até ganhou a Palma de Ouro em Cannes).


Analisando Fahrenheit 9/11, podemos, desde logo, questionar a sua qualidade de documentário. Em minha opinião, não o é por não ser sério, por não ser objectivo, por não ser fiel à realidade. Também não é estritamente ficcional. É uma espécie de filme de regime, mas ao contrário. Aqui, em vez de se exaltar a situação, tenta-se denegri-la com estranhíssimas e demasiado forçadas teorias da conspiração, fruto de uma imaginação tão fértil quanto doentia.
O filme tenta retratar o mandato de George W. Bush enquanto Presidente dos EUA e começa logo com uma pérola: assume-se que um director de informação de um canal televisivo, primo de Bush, ao reproduzir uma sondagem favorável ao primo no decisivo estado da Florida, lhe deu também a vitória eleitoral - brilhante, não é?
Todos nos lembramos que Bush, em absoluto, foi menos votado que Al Gore. No entanto, essa é uma situação de debilidade no sistema democrático norte-americano há muito prevista e que, em caso limite, continua a poder acontecer, não retirando legitimidade ao vencedor.
Avançando no filme, chega-se ao 11 de Setembro e às intervenções militares no Afeganistão e no Iraque. É aqui que "percebemos" como tudo aconteceu. Afinal, a família Bush, com fortes ligações aos familiares de Osama Bin Laden, através de um esquema delirante, consegue obter largos dividendos financeiros (?!) com o colapso das torres.


A segunda metade do filme, é um constante discorrer do pior populismo. Primeiro, é ridicularizada uma mãe que, tendo dois filhos a combater no Iraque, sente-se tão orgulhosa que todos os dias coloca, de forma simbólica, uma bandeira americana no jardim da sua casa. Michael Moore, assume a dita entrevista e presta-se a um execrável papel, riquíssimo no desprezo pelos legítimos sentimentos de uma mãe. A seguir, o mesmíssimo Moore, à boa maneira de Manuela Moura Guedes, explora até à exaustão o terrível drama de um casal que perdeu um filho, abatido quando sobrevoava de helicóptero uma qualquer cidade iraquiana.
Enfim, todo o filme é um exemplo de primarismo populista destinado a um público ávido de argumentos fáceis que são, na maior parte dos casos, bastante discutíveis.Para que fique claro, não devo, não posso, não sou fã da generalidade das políticas do executivo Bush, Tão-pouco alinho nos tiques imperialistas que emanam da Casa Branca. Pura e simplesmente, o teor deste texto não trata de avaliar o desempenho do actual Presidente americano. Outrossim, de desmistificar aquilo que, em Portugal, foi e continua a ser apresentado como um notável documentário, quando, na verdade, não passa de um tempo de antena elevado à categoria de longa metragem e com publicidade gratuita e abundante em tudo quanto é órgão de comunicação social.

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